terça-feira, 5 de agosto de 2008

Luz Silenciosa

Luz silenciosa fala sobre o tempo. O vemos retratado em todos os arredores, poros, cantos e direções do filme, seja através de objetos, de símbolos ou do seu próprio ritmo.

Ambientado numa pequena comunidade escondida, ou melhor, perdida no meio do México, que mais parece uma cidadezinha na Suécia, “Luz silenciosa” nos mostra a trajetória de um homem (Johan), que apesar de muito dedicado a sua família, mulher e filhos, se apaixona por outra. Essa paixão, ainda que proibida e não aceita moral ou religiosamente parece ter uma força grande demais para ser sufocada.

A forma como o filme retrata o triângulo amoroso é de uma realidade impressionante. Essa situação não é mostrada de forma glamourosa ou com cenas tórridas de luxúria e libido entre os amantes, como muitos filmes costumam retratar. Mas sim com todas as dores e dificuldades envolvidas em se ter um sentimento não permitido por alguém. Os encontros escondidos, os abraços desesperados de carinho, as conversas com a esposa, os conselhos dados por amigos e parentes, a angústia, as tentativas de parar... tudo isso reforça o caráter verdadeiro da história e de seus personagens. Além disso, a traição não é o clímax dessa história, já que o caso existe há alguns meses, antes mesmo de começarmos a conhecer os personagens. Estamos entrando em algo em movimento, não presenciamos o começo de tudo.

Em se falando de veracidade, é engraçado o fato do diretor não ter se importado com as diversas quebras de diegese que ocorrem principalmente durante a cena do banho no lago, em que as crianças olham diretamente para a câmera em vários momentos. Quase como se esta estivesse ali apenas documentando, se infiltrando no meio daquela família e de seus hábitos. Sentimos nossa presença em meio aos acontecimentos. E o tempo que Carlos Reygadas utiliza ajuda em muito nesse sentido. Um tempo lento, de observação, de aproximação e de reflexão.

A cena inicial já nos anuncia como as próximas horas se seguirão. A beleza e a magnitude de um nascer do sol filmado num plano geral que segue em frente e cujo som da noite possibilita uma sensação de entrega e nos dá noção do poder esmagador do tempo. A anunciação de um novo dia, que na vida de muitos pode trazer alegrias e conforto traz confrontações e incertezas para outros. Há sempre um amanhã. Não necessariamente estamos preparados para ele, mas ele chega mesmo assim.

Os personagens e seu núcleo familiar nos são apresentados durante um café da manhã. Crianças comendo cereais. Não são necessárias falas para que compreendamos o plano geral dos acontecimentos. Basta um “eu te amo” dito de uma forma estranha para percebermos que há algo de errado naquele casal. E para terminar essa cena, a câmera vai se aproximando do homem, quase que pedindo permissão para invadir sua solidão silenciosa e presenciar seu choro íntimo.

Esse movimento de câmera se repete várias vezes, se aproximando constante e lentamente, seja do personagem, seja do local que nos será mostrado a seguir. Sempre com cuidado, parecendo querer tatear antes de se aproximar demais. Assim, os espaços são quase sempre explorados antes que a ação se desenvolva nele.

A temática trata o ritual do cotidiano. Uma vida simples e um dia a dia certo e sem surpresas é desarranjado. Esse pacato universo perdido e sua realidade parecem ter sido quebrados por essa traição. Os habitantes vivem, se vestem e se penteiam conservadoramente. Parecem também ter valores morais muito fortes, regidos pela Igreja e pela noção de diabo e de pecado. Tudo isso só serve para reforçar a angústia e a culpa experimentadas por Johan.

Os diálogos cheios de pausas e sem muitas variações no tom ou na forma de serem expressos soam falsos ou demonstram certo desconforto, levando todos a parecerem um pouco frios ou a darem a impressão de estar sempre querendo dizer algo além do que está sendo dito literalmente. Podemos sentir isso através de detalhes na atuação, de gestos ou de emoções que nos são passados apenas pelas imagens. Seja a reação a um “elogio” feito pelo marido, seja um “eu te amo” mal dito, braços que se juntam escondidamente ou o protagonista chorando no carro, na volta de um passeio com a família.

O relógio na parede, soando seu tic-tac sem parar, pressiona os personagens. É o tempo que urge e que exige. O tempo que não pára. Seja na casa da família, seja na casa dos seus pais, onde o calendário possui esse papel de marcador de tempo. Há até mesmo um momento interessante, em que Johan pára os ponteiros do relógio e seu movimento barulhento, quase como pedindo uma pausa, pedindo um descanso. Ou um outro, decisivo, em que o voltar dos ponteiros causa muito mais que apenas uma mudança de horário.

A fotografia é espetacular. Os planos abertos foram feitos para serem vistos no cinema. Numa tela grande que dê vazão a solidão contida na imagem. Para alcançar os closes, o diretor se aproxima lenta e tranquilamente, com um movimento estável. Mas nada é marcado ou definido por uma forma apenas de filmar. Cada momento tem seu método. Seja a câmera na mão quando estão todos no lago, o plano detalhe do rosto de um senhor que já viveu muito e cujas marcas da idade e do conhecimento se vêem em seu rosto e suas dobras, os planos abertos indicando a solidão ou a grandiosidade do mundo em relação ao homem, os closes em que podemos perceber toda a tristeza de alguém e nada mais (câmera objetiva com um campo focal curto), a câmera mais livre seguindo os pés de um homem que vai ao encontro de sua amante ou um plano médio em que simplesmente caiba duas pessoas se abraçando. Cada plano meticulosamente pensado. Cada movimento se articula para que recebamos bem o próximo.

Há momentos de puro lirismo. As crianças se divertindo ao assistirem Jacques Brel na televisão, uma borboleta saindo de um quarto, a câmera que segue, após a saída do ator, até aproximar seu foco de uma linda flor, etc. Assim como há momentos simbólicos como quando “a outra” protege seu triste amante do sol e de sua implacabilidade apenas com a mão. Como se pedindo licença e, ao mesmo tempo, mostrando que podemos mudar as coisas se mudarmos de perspectiva: Ela não pode impedir o sol de brilhar. Mas pode impedi-lo de ofuscá-la. Como se pequenos gestos pudessem fazer uma grande diferença no painel geral dos acontecimentos. Teoria essa confirmada ao fim da exibição.

A cena final fecha magnificamente um filme que é de uma sutileza e de uma leveza impressionantes. O desfecho fantasioso não se desvirtua do resto e o universo dessa história se completa mais uma vez através de uma marcação de tempo.

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