domingo, 25 de outubro de 2009

Na praia com Agnès





Um andar calmo. Uma inquietude serena, o olhar vibrante e expressivo. Um encantamento com as coisas, próprio de uma criança. Agnès Varda olha para o mundo como se sempre fosse a primeira vez.

Essa mulher, senhora, cineasta, super simpática e carinhosa que desata a falar depois que se sente a vontade é uma força ambulante, energia impaciente, que esbanja conhecimento. Não somente um conhecimento de livros, mas um advindo da experiência, ingênuo, repleto de impressões e sentimentos.

Ela consegue extrair beleza de quase qualquer coisa. E gerar questionamentos das mais simples paisagens. E mostra no dia a dia que tudo está ali, depende apenas da sua forma de ver o mundo, de um ângulo, de uma espera por um plano perfeito, simplesmente do seu olhar.

Tive o privilégio de conversar com Agnès nos três dias em que esteve aqui para o Festival do Rio. Aprendi muito, apenas observando sua humildade, integridade, honestidade e senso de humor. Até mesmo fechar uma caixa com barbantes pode se tornar um evento e uma fita vermelha se transformar numa gravata enlaçada por ninguém menos que ela para ser um presente de despedida.

Para quem nunca assistiu um de seus filmes, aproveitem que há vários curtas e médias metragem no youtube. Eu recomendo “Salut Les Cubains”, “documentário” que ela fez em 1962, quando esteve em Cuba; Black Panthers, sobre o movimento dos Pantera Negras nos EUA e L’Opera Mouffe, uma montagem de imagens filmadas na Rua Mouffetard, em Paris, no ano de 58.

Conhecendo ou não sua obra, “As praias de Agnès” é um filme necessário. Não atinge apenas os cinéfilos ou amantes da nouvelle vague e de seu trabalho nesse período. Atinge a qualquer um que admire o belo e que preze por momentos de magia.

Agnès abre as portas de seus 80 anos e conta sua vida, seus temores, suas alegrias e suas dores. Te dá energia de vidas a fio apenas mostrando do que ela foi e é capaz até hoje. Além disso, é um filme de amor. Amor pela vida, por sua família, pelos filmes, pelas praias…

Um amor também incondicional pelo marido Jacques Demy, falecido há quase 20 anos, que por mais sofrer que possa ter causado, é lembrado com carinho, admiração e sem desespero, num clima “que seja eterno enquanto dure”.

Ao longo desses tres dias pude observá-la.

Varda ama cores. Anda colorida como só ela. Admirou e comprou vários vestidos brasileiros. Dá uma aula de empacotamento com direito a “Viu? Já podemos trabalhar profissionalmente numa loja de embalagens!”.

Na praia, no último domingo de sua estadia aqui, Agnès filmou o mar, procurava a linha do horizonte em meio aos reflexos do sol na tela de sua pequena câmera. Ajudei-a a criar sombras, mas o efeito não era o mesmo. Essa incapacidade a deixava indignada (“Não dá pra ver nada nisso! Não vejo nada! Que que eu vejo? Eu mesma, é o que eu vejo”). E na hora de fotografar o mar, ela não se apressava. Esperava a onda perfeita. Fez algumas tentativas, mas não desatou a fotografar como é de costume na era digital. Tirava uma foto. Não era o que queria, esperava… tirava outra. “Pas mal…”

Eu, na minha mudez estarrecida de admiração só escutava as lições que Agnès passava, assim, como quem fala de receita de bolo ou de sobre como tá quente o dia hoje. A impressão que me dá é que essa mulher transborda paixão. O lirismo presente em um simples comentário sobre a luz das sete da manhã, a mais bonita segundo ela. “Não há outra melhor que essa, a luz lateral. Veja como ela preenche as formas, dá textura…”

O deslumbramento que flores caídas no chão lhe causam, a vontade de conhecer museus, a curiosidade de saber lugares, bairros, de aproveitar cada momento ao máximo. Varda vive descobrindo o que está a sua volta. Fala de seus queridos amigos ou familiares com muito amor e admiração. Não faz nada para agradar ninguém.

“Você tem que alimentar o espectador. O diálogo ja é a cena. A questão é que não pode mostrar apenas duas pessoas se despedindo na estação de metro, você precisa dar sustância ao público” – disse em resposta a uma pergunta minha.

Nos últimos minutos antes de ir pro aeroporto, ajudei-a a arrumar suas coisas e ela filmou a praia do Leme cheia pela janelo de seu quarto, subindo a câmera dos desenhos das pedras portuguesas, passando pelo mar de gente até chegar a água. Esse diário de imagens que ela está construindo é bem mais interessante do que qualquer aula de cinema que pudesse dar falando. E ao final, fui presenteada com uma pose para que pudesse fazer um retrato. “Vou tentar sorrir pra você”.

Fotografei também as lindas flores que ela, muito decepcionada, teve de deixar aqui por restritas leis aéreas.

A senhora de cabelos bicolores que diz ter deixado assim só pra se divertir disse, como veredito, ter adorado as praias brasileiras. Gostou também do evento e de conhecer pessoas ávidas por cinemas.

Mesmo admitindo certas limitações físicas, decorrentes de sua idade, a calma e a segurança em seus gestos e palavras (palavras essas certeiras que vão sempre direto ao assunto), transpassam a sabedoria dessa jovem senhora.

Um coração sábio e vivido, um corpo um pouco cansado, mas teimoso que só ele. Linda, definitivamente uma das mulheres mais lindas que já conheci.

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