segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Filhos bastardos do cinema de guerra

Inglorious Bastards, de Quentin Tarantino é um de seus filmes mais maduros e políticos. Como justificar isso? Tentarei.
As influências de diretores como Sam Peckinpah e Sergio Leone continuam lá, (in)sãs e salvas. Desde a estética da violência, com direito a câmeras lenta e expressões desgraçadas dos personagens ao atirarem  de um a uma atmosfera de tensão e traição do outro.
Os primeiros 15 minutos são magistrais, uma abertura quase épica. Uma aula de cinema em "como criar tensão e gerar expectativa no espectador, parte um".
Me lembrou bastante o começo de Era uma vez no Oeste. Os gestos lentos, o silêncio, a espera, a não explicação ao espectador logo de primeira do que está acontecendo... Além disso, a trilha sonora misturando "Pour Elise" com um violão "flamenco", contextualiza a dramaticidade daquele momento e ainda atualiza o clássico de Beethoven.
A calma com que tudo se desenrola naquelas primeiras cenas na casa do senhor Lapadite: servir o leite, acender o cachimbo, a educação e polidez do Coronel e do chefe da família, a paciência e meticulosidade de cada gesto e palavra são impressionantes e provocam eficientemente a sensação de tensão quase superficial (de superfície, não falsa) pretendida pelo diretor. Além de ser uma fantástica maneira de se apresentar um de nossos protagonistas.
Momentos de tensão como esse são espalhados por todo o filme. A antecipação da chegada do Judeu Urso, com apenas o som do taco de beisebal ecoando de dentro da caverna, ou a cena das armas apontadas em direções opostas debaixo de uma mesa, e ainda uma, quase versão subversiva de cinderela, dentre outras são alguns exemplos.










Meu comentário deste ser um filme político, advem de dois fatores.
Um - todos os personagens são caricatos. Ninguém se salva. Americanos são burros e rudes, alemães são inquietos, fortes e raivosos, alguns simplesmente maus e ingleses são polidos e exagerados na dicção das palavras e em sua educação. Essas são algumas possíveis, mas não finitas interpretações. O que quero dizer é que não há dois lados caracterizados: maus e bons. Ambos os lados são atraentes em seus personagens e cretinos. Ninguém está imune aos terrores da guerra. Os próprios judeus, inesperadamente, estão sendo mostrados como assassinos em busca de vingança. Há um equilíbrio admirável entre os dois lados: Aldo Raine e Coronel Hans Landa de um lado, a judia e o soldado nazista simpático do outro, Hitler mimado e ridículo e Churchill gordo e de meias palavras, etc. Acho até que o comportamento dos judeus (violento e vingativo) é razoavelmente justificado pela caracterização também exagerada dos nazistas e pode ser tido apenas como um artifício para gerar humor durante o filme quase inteiro. O momento mesmo em que para mim esse discuroso muda é o que me levará ao segundo fator:
A cena final de Bastardos Inglórios me parece (e sei que é uma das possíveis interpretações) um discurso claro de Tarantino como uma crítica não só ao cinema de segunda guerra, como ao espectador comum e à própria guerra.
Quem não viu o filme, não leia o que vou escrever aqui:

Quando a sala de cinema pega fogo e todas aquelas pessoas estão sendo queimadas vivas, desesperadas por uma saída, aquele ato de justiça pretendido pela judia torna-se crueldade, vingança, desumano. É difícil rir ou tirar satisfação daquele momento, pelo menos para mim. E para finalizar vem o ápice do absurdo, quando os dois bastards metralham Hitler e seus acompanhantes, destruindo assim a fonte e a pirâmide do poder nazista. E não bastando mudar completamente os rumos da história, Tarantino reafirma a ação: Donny Donowitz metralha até destruir completamente a cara de Hitler, num ato e num ângulo quase Rambo ou filme de metralhadoras que o valha. É o momento que todos na platéia estavam esperando, mas não achavam, que ia acontecer. A ultra vingança, a vingança última do espectador. Dar a Hitler o que ele merece. Mas a cena é construída de forma tão exagerada que chega a ser patética. Ele está dando o que o público quer. Está dizendo, "é isso não é? sem nenhuma piedade. vamos destruir todos aqueles nazistas desgraçados." Mas no final das contas o bastard que o mata está se igualando às imagens do filme que estava passando, "O Orgulho da Nação", em que grande parte dos minutos mostrados é preenchido por muitas mortes, uma atrás da outra.

Bom. Resumindo. Creio que o filme mostra que numa guerra não há vítimas nem culpados. Ninguém está impune ou isento dos horrores, todos acabam se rebaixando aos atos mais terríveis e a crueldade passa a ser a lei.

A crítica que mencionei ao cinema feito pós 45 vem da forma de retratar Hitler, que além de recurso cômico,  é genial por nos mostrar quão ridícula era a maneira com que costumávamos pensá-lo: louco, sem personalidade, nenhuma simpatia, etc. Filmes dessa época retratavam comunistas e nazistas como robôs malvados, pessoas sem nenhuma compaixão. No máximo eram astutos e inteligentes, mas nunca mereciam um respiro de hesitação na hora de serem executados. Por serem inimigos (americanos e portanto, de Hollywood), não mereciam maiores complexidades de caráter. Deveriam ser vistos sem piedade.


Outro ponto que admiro é a narrativa instável, que não segue um padrão lógico nem previsível, muitas vezes fazendo exatamente o que não esperávamos.

E finalmente, como não poderia deixar de ser, Tarantino ama cinema, e neste filme sua devoção vai muito além das citações e claras influências. O cinema tem um papel fundamental na narrativa e nos personagens. É tida como metáfora em diversos momentos:

  • Quando Brad Pitt diz que um espancamento é o mais próximo de um filme que eles teriam, está falando de um cinema espetáculo, que gera entretenimento. 
  • Há o cinema como resistência, no caso do filme, levado ao extremo e usado como arma de vingança.
  • Espaço de encontro. Um local que reúne as pessoas.
  • Cinema de arte, a cima de qualquer nacionalidade ou teoria política (até hoje os filmes de Riefenstall são tidos como obras prima e o personagem do soldado inglês, um ex crítico de cinema, era um admirador do expressionismo alemão).
  • Cinema como propaganda e fonte de contágio de valores morais, por mais terríveis que possam ser.
Enfim, é pelas referências, pela capacidade de fazer rir e falar sério, pela reflexão que gera sobre a linguagem cinematográfica e a forma que esta lida com a história, pela maestria na execução de planos e cortes, diálogos como sempre inteligentes e exatos e por seus personagens sedutores... é que Bastardos Inglórios é um dos melhores filmes de Tarantino.

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